O Oscar coroou “Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo” como o grande filme de 2022. Recordista de prêmios antes mesmo da cerimônia ir ao ar, a ficção-científica dirigida pela dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert fechou a noite com sete estatuetas: Melhor Filme, Direção, Roteiro Original, Atriz Principal, Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante e Montagem.
Não é pra menos. Premiações, listas de melhores do ano e coisas do tipo nos servem como uma radiografia de como é a cultura pop naquele momento. E o filme dos Daniels é, talvez, o melhor print da atualidade.
Salvas exceções, as maiores bilheterias do cinemão estão em aventuras da Marvel. Elas misturam otimismo, ação alternada por diálogos espertos e um maximalismo de elementos em tela. E há ainda o conceito de “multiverso”, onde versões diferentes de personagens podem ser apresentadas em diferentes cenários, como visto em “Vingadores: Ultimato”, “Homem-Aranha: Longe de Casa” e “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa”, “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, “Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania” e nas séries de TV “WandaVision” e “Loki”.
Essa ideia de multiverso é também explorada em “Ricky e Morty”, um fenômeno do nicho de animações adultas, mas com um direcionamento mais pessimista. A Warner/DC, com o lançamento de “Flash”, também flertará com o tema nas telonas, de modo que ainda sobrará espaço em “elseworlds” para as sequências de “Coringa” e “Batman”.
“Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo” é o reflexo dessas ideias que têm dado certo, mas ampliadas por uma narrativa original, que utiliza tais elementos para construir o melhor filme possível. E cobre ainda outras carências históricas em produções num geral ao trazer uma protagonista feminina forte, um elenco mais diverso (a maioria dos personagens principais é interpretada por atores nascidos ou de ascendência de países asiáticos), e abordar um romance entre meninas. Em suma: é o filme perfeito para o momento perfeito.
Na trama, Evelyn Wang (Michelle Yeoh) é uma imigrante chinesa que precisa lidar com uma série de problemas. Sua lavanderia está à beira da falência, seu casamento vai de mal a pior, seu pai (James Hong) a enche de críticas, ela não consegue se conectar com sua filha (Stephanie Hsu), e tem na cola uma burocrata da receita federal sem muita paciência (Jamie Lee Curtis).
Quando sua família vai à uma reunião para resolver as pendências com o leão, algo estranho acontece: uma fenda no multiverso é aberta. Seu marido (Ke Huy Quan), meio covarde, é substituído por uma versão de uma realidade paralela, mais corajoso e com grandes habilidades em artes marciais. A partir disso, Evelyn entra em uma aventura contra um inimigo misterioso e esquisito, na qual explorará diferentes variantes de si mesma, a fim de salvar a todos ao redor.
A direção utiliza esse ponto de partida divertido para entregar um espetáculo visual, em que cenários deslumbrantes e figurinos criativos ampliam sequências virtuosas de ação, onde o cinema de kung-fu de Hong Kong das décadas de 1960, 70 e 80 deve ter servido como a maior inspiração. Mas isso é apenas o acompanhamento para que o roteiro desenvolva relações complexas dessa família e da Evelyn como um indivíduo. A jornada externa é uma parábola para a jornada interna da personagem.
Por atirar para diferentes lados, o longa exige um esforço primoroso do elenco. Principalmente de Michelle Yeoh e Ke Huy Quan. A dupla encarna a atuação aqui em diferentes fronts, passando pela fisicalidade das artes marciais, pelos registros de comédia e de drama. São vários personagens ao mesmo tempo, e cada um possui um toque de individualidade que o faz único na trama.
O resultado é um filmaço. Grandioso, exagerado, mas que não perde o pulso em momento algum. “Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo” é capaz de emocionar na mesma medida que arranca risadas, de impressionar pela qualidade da ação enquanto desenvolve reflexões internas. Artístico, muito artístico, mas com aquele pé no pop pipocão que é capaz de cativar plateias em diferentes lugares do mundo. É a tradução do momento em tela grande.
Claro, não é para todo mundo. Nenhum filme é. A montagem frenética e as sequências de ação podem soar muito aceleradas, de “videogame”, para espectadores que prefiram uma narrativa mais lenta. As ideias mais malucas (dedos de salsicha, os atos absurdos nas horas de se conectar com outros mundos, os figurinos e efeitos visuais) podem soar “cartunescas” demais para aqueles que curtem algo mais pé no chão.
As discussões em cima da vitória, quando não tendem a um lado racista, são boas e atestam o quão provocativo o filme consegue ser. É como se fosse a “velha guarda” contra o “progresso”. Que bom então que há filmes para todos os gostos disponíveis por aí.