Na faculdade de Jornalismo, tive um professor em umas cinco ou seis matérias que utilizava uma metáfora para explicar como seria uma situação ideal: “O Mundo da Barbie”.
No Mundo da Barbie, conseguiríamos de primeira fontes quentes para quaisquer reportagens que quiséssemos fazer, os sistemas em torno colaborariam para que as informações fossem fornecidas, os equipamentos em mãos jamais falhariam, não haveriam quaisquer interesses egoístas da parte de entrevistados e por aí vai.
Infelizmente, havia sempre o contraponto: “O Mundo Real”. No Mundo Real, é bem possível que as fontes confiáveis sejam bem difíceis de serem achadas, que as instituições que nos cercam não nos ajudariam por nada, os equipamentos fornecidos seriam gastos e poderiam falhar na hora, e os entrevistados quase sempre só falariam aquilo que os fizessem parecer bem ao público.
É nessa analogia que contrapõe um mundo fantasioso, onde tudo dá certo, e um mundo realista, onde as coisas são bem mais difíceis, que está calcado “Barbie”. E em outras coisas, mas já chego nisso.
“Barbie” já é o grande filme de 2023. Independente de rankings pessoais ou opiniões quanto às escolhas narrativas aqui, a verdade é que o longa-metragem se tornou um fenômeno cultural. Já tendo ultrapassado a bilheteria de 1 bilhão de dólares globalmente, a obra conquistou o público e fez com que salas fossem lotadas de pessoas usando a cor rosa.
Crianças, adultos, meninas, meninos: há espaço para todos viverem seu sonho colorido. E haters, agora, soam distantes ante aos números conquistados. Bom para o cinema, bom para todos nós! A essa altura do campeonato, eu não duvido em indicações para as categorias principais na próxima edição do Oscar.
Na trama, Barbie (Margot Robbie, que parece ter nascido para o papel) tem sua vida perfeita no Mundo da Barbie arruinada quando começa a pensar sobre… a morte. Sua rotina matinal, antes confortável e energética, agora é interrompida por mau hálito, água fria e leite estragado. Seus pés, antes perfeitamente empinados, agora têm as solas tocando no chão. Até celulites brotam em suas pernas, antes perfeitamente plastificadas.
Para sanar isso, Barbie deve ir ao Mundo Real, encontrar a criança que brinca com ela e tentar entender o porquê dos sentimentos tristes estarem atravessando o véu entre as duas e afetando a boneca em sua realidade fantasiosa.
No caminho entre mundos, Barbie descobre que Ken (Ryan Gosling, que parece se divertir muito no papel) a está acompanhando. Juntos, então, a dupla chega ao Mundo Real. Por lá, eles têm contato com uma maldade que, em sua realidade perfeita e idealizada, nunca tinham experimentado.
Pouparei os leitores que ainda não assistiram ao filme no cinema de informações que possam estragar as surpresas no roteiro, mas vale dizer que o contato com a humanidade age de maneiras diferentes nos dois personagens. E os efeitos disso geram consequências que mudarão o Mundo da Barbie para sempre.
A direção do filme é da Greta Gerwig (de “Lady Bird” e “Adoráveis Mulheres”), que divide o roteiro com o Noah Baumbach (“História de um Casamento”, “Frances Ha”) e é interessante observar como funciona uma abordagem mais autoral de cineastas alternativos por cima de uma propriedade intelectual tão grande e pipoca assim.
Temas espinhosos como machismo, capitalismo e depressão são abordados. Mas tão importante quanto o que é abordado é como isso é abordado. Gerwig constrói uma narrativa simples e divertida, na qual a estética plástica, artificial, dos cenários e das atuações, e o jeito como isso passa ruir com a interferência do realismo, reforça as mensagens passadas.
Segmentos com significados profundos são interpretados como se tudo fosse um comercial infantil datado. Há cenas de perseguição que são coreografadas como num desenho da Hanna Barbera. E ações de personagens, que tentam ser nefastos, propositalmente soam como um role play de crianças que não sabem bem o que estão fazendo (uma de minhas cenas prediletas é quando alguns personagens tentam fugir do Mundo da Barbie, mas quase são impedidos por um muro que não é construído corretamente).
Também é muito interessante observar como o roteiro propõe que a própria perfeição transmitida no Mundo da Barbie é falsa, cheia de falhas, que é a idealização a partir de um grupo, com as coisas funcionando para que esse grupo tenha essa vida imaculada. O que fica claro quando é inserida a personagem Barbie Estranha (Kate McKinnon), cujo diálogo introdutório a descreve como a boneca que todas as outras Barbies acham esquisitas, têm receio de ficarem perto, apenas por ter uma aparência diferente.
E é justamente no encontro com a realidade, e mais com o que há de ruim na humanidade, que os personagens, supostamente perfeitos, passam a questionar para quem é essa perfeição, e quem pode sair perdendo através dela. Então, é preciso um pouco de impureza, um pouco de corrupção, para enxergar que, na verdade, não existe perfeição.
Mas acima de tudo, a coisa mais atrativa em “Barbie” é ele parecer uma ode ao “fazer” cinematográfico. Há um esforço em construir cenários magníficos, deslumbrantes, que dão aos olhos a impressão de grandiosidade que um mundo de fantasias deve proporcionar – e que telas verdes jamais conseguem proporcionar.
As homenagens a clássicos do cinema não soam jogadas, sim como uma alavanca para trazer estilo à história (veja aqui uma lista de referências feita pela diretora ao site Letterboxd). “Barbie” é um filme montado a partir da paixão pela sétima arte, e os momentos onde ocorrem esses hipertextos reforçam seu tom lúdico. É como se estivéssemos na imaginação de alguém que, naquele momento, está brincando com suas Barbies: as bonecas, em sua imaginação, vivem situações parecidas com o que foi assistido nesses filmes.
Claro, não é perfeito. Por exemplo, a participação do Will Ferrell como presidente da Mattel parece esticada além do ponto. Porém, quando o próprio subtexto deixa no ar o quanto a perfeição, por vezes, é ruim aos envolvidos, considerar isso negativamente me parece buscar pelo em ovo.
“Barbie” é um filme incrível. Uma pérola de alguém que parece apaixonada por cinema e que domina sua linguagem, de modo a trazer em tela a fantasia imperfeita que é perfeita para cativar uma plateia. No fim, há muito do Mundo Real no Mundo da Barbie, e é isso que faz dele tão brilhante.